Em 6 de setembro de 1770, em pleno regime colonial, uma mulher negra escravizada no interior do Piauí ousou fazer algo impensável para sua época: escrever uma carta de denúncia ao governador da capitania. O documento, redigido por Esperança Garcia, tornou-se a mais antiga petição jurídica de que se tem notícia no país.
O texto foi enviado ao então governador Gonçalo Lourenço Botelho de Castro e descrevia abusos ocorridos na Fazenda Algodões, localizada no atual município de Oeiras, primeira capital do Piauí.
Na carta, Esperança denunciava castigos físicos, a separação de sua família, a exploração do trabalho forçado e a impossibilidade de exercer a fé. A linguagem simples, mas objetiva, conferiu caráter jurídico ao documento, revelando não apenas a dor de uma mulher, mas a consciência de seus direitos.
PIONEIRA
Por sua estrutura e finalidade, o documento é considerado o primeiro registro de uma mulher atuando como advogada no Brasil — a carta é considerada o “primeiro habeas corpus do Brasil”. Esperança Garcia é reconhecida hoje como a primeira advogada do país, um símbolo de resistência e da luta por justiça.
RESISTÊNCIA
Mais de 250 anos depois, o gesto de Esperança segue ecoando. Sua carta é estudada em escolas, universidades e centros de pesquisa como exemplo de protagonismo feminino e negro em uma época de silenciamento.
No Piauí, 6 de setembro é celebrado como o Dia Estadual da Consciência Negra, em sua homenagem. Em Teresina, a OAB Piauí mantém um espaço cultural que leva seu nome, reforçando o legado deixado por ela; além disso, em maio de 2023, inaugurou, no CFOAB, um busto e uma estátua também em sua homenagem.
LEGADO
A história de Esperança Garcia não é apenas a memória de um ato de coragem, mas um marco na luta pelos direitos humanos no Brasil. Sua voz, registrada em papel no século XVIII, ecoa até hoje como símbolo de resistência, fé e defesa da dignidade humana.
CARTA
Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que cai uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
Esperança Garcia